Dentre as possibilidades de gerar desenvolvimento econômico no meio rural, os arranjos produtivos locais (APLs) constituem-se em um dos processos de melhor resultado.
Ao diagnosticar capacidades não triviais de especificidades comuns, cinturões produtivos consolidam homogeneidades que, mutuamente, robustecem competitividade e reputação. Disso resultam graus de especialização produtiva, com vantagens não exclusivamente econômicas, que favorecem o desenvolvimento.
A tendência de avanço progressivo dos APLs encaminha-se para a busca de outros protocolos. Estes, para além de consolidar a experiência pregressa, tratam de criar valor local por meio de marcas protegidas e imunes a tentativas de não pertencentes ao território demarcado que venham dele se beneficiar.
Assim, pautadas por ações coletivas, as Indicações Geográficas (IGs), distinguidas entre indicação de procedência (IP) e denominação de origem (DO), tiveram imensa evolução na agropecuária brasileira.
Vinho do Vale dos Vinhedos, queijo da Canastra, cachaça de Salinas, cafés do Cerrado, do Caparaó e das Montanhas do Espírito Santo são exemplos de denominações de origem que já se consagraram tanto no mercado interno como no externo.
Há, ainda, outra centena de indicações de procedência, sendo que 19 delas são relativas à produção de café, totalizando o maior número de registros para um único produto (em São Paulo existem quatro: Alta Mogiana, Região de Pinhal, Garça e Vale da Grama)1.
O destaque para as IGs relativas ao café não é uma escolha casual. Nos últimos meses, têm sido registrada expressiva alta de preços do produto, sendo o café um dentre os responsáveis pela alta dos índices inflacionários (ao lado dos ovos e da carne).
Fatores de distintas naturezas respondem pela alta observada, como conflitos geopolíticos, efeitos das mudanças climáticas, comprometimento de rotas logísticas (Canal de Suez), escassez de estoques de agem, incremento de consumo acima das capacidades de suprimento e lei EUDR (antidesmatamento da União Europeia), que formaram um conjunto de restrições que catapultaram os preços do café nas bolsas internacionais.
Tal magnitude de majoração não era observada há mais de quarenta anos, quando da ocorrência da geada negra de 1975.
Os agentes econômicos envolvidos nesse agronegócio (traders, exportadores, torrefadores e solubilizadores) perceberam situação real de, no curto prazo, ficarem sem o produto para a condução de seus negócios. Estima-se que a demanda supere entre 15% a 20% a oferta atual.
Assim, instaurou-se o efeito manada, em que há uma corrida pela aquisição de contratos futuros para entrega de mercadoria em prazo estipulado. Nos cinturões produtivos, o incremento dos preços em 12 meses superou os 200%!
Por mais significativos que tenham sido os avanços em prêmio e em reputação obtidos pelas IGs, sejam IPs ou DOs, a escalada das cotações, praticadas pelos compradores, são incomparavelmente superiores a todo o esforço antes dedicado à valorização do produto regional, conduzido pela governança do território certificado2.
Tal contexto, não experimentado anteriormente, pode se traduzir em mais dificuldades na condução da governança territorial. Sob preços elevados, as especialidades têm os prêmios, antes significativos, reduzidos a ponto de desincentivar a produção desses cafés diferenciados, prejudicando o trabalho da governança territorial, mobilizada permanentemente para subir a régua dos quesitos de qualidade e produtividade entre os cafeicultores aderentes ao certificado3.
Após décadas de preços apenas razoáveis sob produtividades acima da média, os cafeicultores se encontram numa condição de quase formadores exclusivos dos preços para o produto. Tal empoderamento pode gerar posturas oportunistas, pautadas pela omissão da necessária cautela (propensão à tomada de risco), temperada por pitadas de ganância que os preços recebidos induzem.
Pressão pela flexibilização das regras que caracterizam os territórios e suas marcas coletivas surgirão, assim como redirecionamento da comercialização para outros interessados no produto, seja ou não ele representativo da tipicidade identificada pelo certificado concedido.
A mobilização em torno da tipicidade regional foi, na maior parte dos casos, motivada pela busca de valorização do produto, pela qualidade diferenciada e pela reputação de seus associados em implementarem boas práticas agronômicas conjugadas à sustentabilidade ambiental e social.
Sob contexto de carestia do produto, a vaga de procura por café, seja ele qual for, se sobrepõe a todo o restante que, coletivamente, se construiu ou ainda irá se construir.
Disso resulta o questionamento: qual a potência do incremento dos ganhos individuais na gênese de desmobilização da iniciativa territorial?
Aqueles responsáveis pela governança precisam estudar como as DOs italianas e sas enfrentam tais desafios. Nesses países, existe histórico de agricultores obtendo rendas muito elevadas, dada a reputação alcançada pelos produtos tipificados (Parma, Bordeaux, Porto etc.).
Em razão das mudanças climáticas, por exemplo, cinturões vitivinicultores pressionam pela introdução de novos varietais. A demanda firme por determinados produtos induz outros a buscarem suprimentos fora da região demarcada, furando o regramento estabelecido.
Enfim, governança sob bonança será um novo momento das IGs que, na maior parte, ainda engatinham na consolidação da excelência para a qual trabalham.
Nesse momento, os gestores das IGs devem investir na capitalização de suas respectivas indicações, traduzidas em mais e melhores atividades de natureza coletiva.
Aparentemente, o ciclo de alta de preços experimentado pelo café não será de curto prazo. Serão necessárias, ao menos, três safras cheias consecutivas do Brasil para que os preços iniciem uma trajetória de queda. Certamente, haverá queda no consumo, especialmente aquele que ocorre fora do lar, porém insuficiente para alterar substancialmente o patamar dos preços. A inelasticidade característica da bebida forma uma couraça protetora para quedas expressivas no consumo.
Cada IG deverá desenhar suas estratégias para que as premissas fundadoras de sua identidade, em vez de questionadas, sejam fortalecidas. Transparência nas operações comerciais, introdução de contratos de longo prazo, empenho ainda maior na divulgação das marcas, reforço dos alicerces da reputação obtida, premiação ainda maior das unidades que exibem padrões de gestão alinhadas com as práticas regenerativas e ESG são algumas das possibilidades que podem ser acionadas.
(O autor agradece aos pertinentes comentários recebidos do prof. dr. Paulo Henrique Leme, diretor de inovação e tecnologia na Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação e coordenador do Agritech-UFLA/MG).
Notas:
2 Por meio da governança territorial, há um fortalecimento da identidade regional sob pressupostos da coordenação entre atores da cadeia, com garantias tanto de mais transparência como de mais sustentabilidade.
3 “Apesar da crescente consciência sobre a importância da sustentabilidade entre os consumidores, a quota de mercado global do café certificado permanece relativamente estagnada” (extrato de palestra no evento Pré-Colheita/Nespresso, proferida pelo prof. dr. Paulo Henrique Leme).
Celso Luis Rodrigues Vegro
Eng. Agr., MS, Pesquisador Científico do IEA
celvegro@sp.gov.br